Como 'Emilia Pérez' foi de grande sensação a maior polêmica deste Oscar
SÃO PAULO, SP E CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) - "Não é um gênero de que gosto, acho muito violento e não sei lidar com vilões", disse Jacques Audiard a este repórter, o único latino-americano naquela roda de conversa em Cannes, na França, rejeitando as raízes de telenovela do dramalhão que reveste "Emilia Pérez".
Mesmo assim, o diretor reitera sua posição. "É um filme que atravessa diversos gêneros, passa por diversas influências, não posso encaixar numa coisa só", disse ele em passagem pelo Brasil há duas semanas, numa turnê que acabou por virar um pesadelo.
Falhou a tentativa de tratado de paz com os brasileiros, que nas redes sociais fizeram de "Emilia Pérez", grande empecilho para "Ainda Estou Aqui" no Oscar de filme internacional, um inimigo da nação. Sob argumentos nem sempre bem fundamentados, surgiu um clima de guerra, da qual Karla Sofía Gascón, protagonista do longa, se tornou o rosto.
Em entrevista a este jornal a espanhola elogiou Fernanda Torres e lamentou que haja "pessoas que trabalham no ambiente de Fernanda que falam mal de mim".
A fala pegou mal, motivou uma reunião de membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood sobre uma suposta infração às regras do Oscar -o que concluíram que não ocorreu- e uniu latino-americanos em busca de tuítes antigos de Gascón.
Ao vasculhar suas redes sociais, encontraram mensagens que tiram sarro do islamismo, de asiáticos, das vacinas contra a Covid-19 e do movimento antirracista Black Lives Matter -escritas para emular um nazista falando, disse Gascón em sua defesa-, aumentando o ódio a "Emilia Pérez".
É possível dizer que o filme envelheceu mal, ao lembrar que em Cannes ele faturou não apenas um, mas dois troféus, algo raríssimo. Venceu o prêmio do júri e o de atuação feminina, compartilhado entre Gascón, Zoe Saldaña, Selena Gomez e Adriana Paz.
Agora, ao chegar aos cinemas do mundo, a recepção é bem menos calorosa, e a equipe largou mão de Gascón, marcando eventos sem a presença da espanhola ou divulgando pôsteres do filme sem a sua foto, a fim de tentar salvar uma estatueta do Oscar, entre as 13 indicações que o longa, recordista da temporada, recebeu.
"Me entristece porque eu não apoio esse discurso", disse Saldaña, neste final de semana, em referência aos tuítes recém-desenterrados, num bate-papo que deveria ter a presença de Gascón.
"Apenas busco a liberdade de existir sem medo, de criar arte sem barreiras e de seguir em frente com minha nova vida. Querem me cancelar", desabafou Gascón em suas redes sociais, marcando na publicação, entre vários veículos estrangeiros, este jornal.
Para além da atriz, Jacques Audiard também atraiu sua cota de reclamações. "Por ser francês eu não deveria me interessar por um assunto ou outro?", diz ele, sobre as críticas por dirigir um filme calcado na realidade do México. Elas se estendem ao fato de suas protagonistas serem uma espanhola e duas americanas –Saldaña e Gomez.
"É preciso levar tudo o que dizem em consideração, mas a questão dos desaparecidos também me chateia, apesar de não ser a minha realidade. E, sobre as atrizes, para fazer um filme é preciso dinheiro, então tive de buscar estrelas [que assegurassem o orçamento], simples assim."
São justamente esses fatos, porém, que ajudam "Emilia Pérez" a ser uma espécie de aberração cinematográfica. Não num sentido negativo, mas pela inventiva fuga do óbvio ao tratar de seus temas.
O musical narra a história de uma líder de cartel de drogas que passa por uma transição de gênero. Emilia Pérez abandona a família e o crime e, com a nova identidade, decide corrigir seu passado, fundando uma organização que ajuda parentes de desaparecidos.
É uma combinação mirabolante de gêneros cinematográficos, diz Audiard, vencedor da Palma de Ouro por "Dheepan: O Refúgio", em que já testava a elasticidade de seu passaporte francês, ao se pôr no lugar de uma família de imigrantes do Sri Lanka.
As críticas a "Emilia Pérez", porém, não param na falta de latinidade. O longa também é acusado de transfobia, por relacionar a transexualidade ao crime e usar o nome morto -aquele anterior à transição de gênero- de sua protagonista, e de simplesmente ser um musical ruim.
Na visão da turba raivosa das redes sociais, seus números musicais são medíocres se comparados aos de "Wicked", outro que disputa o Oscar de melhor filme.
É uma crítica que faz pouco sentido ao olhar para a tradição francesa nos musicais. Enquanto adaptações mais contemporâneas da Broadway tendem a ser grandiosas e espalhafatosas, com números que incluem orquestrações e coreografias intrincadas, os franceses tendem a cantar a banalidade.
Em vez de escapismo, preferem se prender com mais firmeza à realidade, como em longas que marcaram a cinematografia francesa, de Jacques Demy aos mais recentes "As Canções de Amor", sobre luto, e "Anette", que fala de um crime que deixa uma menina à mercê de um pai inescrupuloso.
"É possível que os musicais franceses sejam, de certa forma, uma crítica aos americanos. Eu não sou grande conhecedor do gênero, mas eu gosto quando ele toca em tragédias, como em 'Cabaret' ou 'Hair'", diz Audiard.
"As músicas nesses filmes têm um propósito claro, e isso foi algo que eu quis fazer, usar as canções para falar da tragédia dos desaparecidos, do drama do narcotráfico, das adversidades da transexualidade. É como uma ópera", conclui, se prendendo, enfim, às raízes verdadeiramente europeias de seu "Emilia Pérez".
EMILIA PÉREZ
Quando Estreia nesta quinta (6), nos cinemas
Classificação 16 anos
Elenco Karla Sofía Gascón, Zoe Saldaña e Selena Gomez
Produção França, México, Bélgica, 2024
Direção Jacques Audiard
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